sexta-feira, 16 de julho de 2010

Durval Muniz fala sobre o Nordeste e a literatura

Artigo publicado em 08/07/2009


Em entrevista a Leonardo Campos*, ele nos fala sobre a reedição de seu livro A Invenção do Nordeste, literatura e muito mais. Leia a seguir.

Leonardo Campos - Seu livro A Invenção do Nordeste terá uma 4ª edição em breve. O que você acha que mudou em seu olhar sobre o assunto da 1ª edição, que já faz dez anos ? (dez mesmo ou é de 1994? deu dúvida, me perdoa?)

Durval Muniz - Acho que o livro continua bastante atual. Não modifiquei meu ponto de vista desde que o escrevi, até porque a mitologia em torno do Nordeste, os estereótipos em torno do nordestino que nele critico continuam circulando e sendo veiculados na região e fora dela. Acho, infelizmente, que ele não é um livro que envelheceu, embora nestes dez anos tenha tido uma boa repercussão e levado a que outros trabalhos fossem feitos na esteira de suas idéias.

LC - Em linhas gerais, o que seria a "invenção do nordeste"?

DM - O Nordeste, como todo recorte regional, é uma invenção humana, são os homens que criam e definem as fronteiras regionais ou nacionais. As regiões não estão inscritas na natureza e não existiram desde o começo dos tempos. Todo recorte regional, toda identidade espacial surgiu em um dado momento histórico, emergiu a partir das ações humanas, sejam elas motivadas por interesses econômicos, políticos, sociais, ideológicos, etc. Quando uso o termo invenção é para chamar atenção para o fato de que o recorte regional chamado Nordeste não existia até os primeiros anos do século XX. O Brasil costumava ser dividido, até então, em duas áreas: o Norte e o Sul. Entre o final da década de dez e a década de 1930 do século XX surgiu o conceito Nordeste, esta palavra passou a ser usada para nomear uma parte do antigo Norte, aquela área de ocorrência das secas e, por isso mesmo, definida como a área de atuação do IFOCS. A partir do aparecimento oficial da palavra Nordeste no documento que define a área de atuação deste órgão, este termo passou a ser usado por intelectuais e políticos, pelas elites sociais desta área para nomear um espaço que reunia os estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Nos anos vinte o movimento regionalista e tradicionalista encabeçado por Gilberto Freyre e o Centro Regionalista por ele ideado trataram de dar a este conceito um conteúdo histórico, uma memória e uma pretensa tradição cultural.

LC - Você dedica quase um capítulo inteiro aos escritores Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto. Considera-os os principais responsáveis por esse processo de "invenção" no âmbito da literatura?

DM - Não, os principais inventores literários do Nordeste são aqueles escritores vinculados as propostas do movimento regionalista e tradicionalista como José Lins do Rêgo e José Américo de Almeida. A visão de esquerda sobre o Nordeste, a visão construída por autores influenciados pelo marxismo, como Graciliano e João Cabral, embora fosse uma tentativa de denunciar a miséria, a pobreza, a exploração de que seria vítima o homem do povo da região, terminou por reforçar uma série de estereótipos sobre este espaço, que já apareciam formulados nos discursos dos regionalistas e tradicionalistas. Sendo obras de grande qualidade estética e de grande repercussão no país, é inegável que títulos como Vidas Secas ou Morte e Vida Severina serviram para fixar no imaginário nacional uma série de imagens e de enunciados sobre o Nordeste, ainda mais porque estas obras foram posteriormente levadas para o cinema e para a televisão com grande sucesso. À medida que optaram por mostrar a face mais miserável e cruel da região, estes dois autores acabaram por reforçar os próprios estereótipos que eram regularmente utilizados pelos discursos das elites deste espaço para a reivindicação de recursos e cargos públicos.


LC - Diferentemente do cinema novo, o nordeste é mostrado no cinema da retomada com belas paisagens (Deus é Brasileiro) e muitas cores e música (Eu tu eles e O Caminho das Nuvens). O que você diz disso?

DM - Embora os filmes de maior bilheteria no Brasil hoje sejam, quase sempre, aqueles produzidos com a participação da Globo Produções, levando para a tela do cinema, autores, diretores e atores consagrados pela televisão e, nestes filmes, como aqueles dirigidos por Guel Arraes continue sendo explorada a mesma estereotípia em torno do Nordeste, toda a série de filmes locados na cidade de Cabaceiras na Paraíba, alimenta os mesmos lugares comuns sobre este espaço, a mesma visibilidade do regional, existindo sim alguns filmes inovadores no que tange a maneira como se mostra e aborda a região Nordeste. Baile Perfumado é, neste aspecto, um filme pioneiro, ao tratar do cangaço, um dos quatro temas nucleares na definição da nordestinidade, articulando-o com o moderno, o tecnológico e não com o tradicional ou o arcaico, como é comum, além do que foge da imagem estereotipada da caatinga seca e da terra gretada, das caveiras e urubus. Amarelo Manga é outro filme inovador, ao trazer para a tela do cinema a metrópole do Nordeste, o fenômeno urbano e não o campo ou a cidadezinha do interior. Sempre digo que meu livro foi possível, ele surgiu, porque a forma de ver e dizer o Nordeste, a narrativa regionalista nordestina não mais se sustentava diante de todas as mudanças que ocorreram na realidade regional, esta narrativa se esgarçou, perdeu legitimidade, perdeu sustentação na realidade. Acho que esta filmografia começa a olhar para o que é a realidade regional hoje sem se deixar dirigir e cegar pela olhar clichê, pelo olhar do senso comum, do já esperado.

LC - A novela global "Senhora do destino" está sendo exibida novamente e seu personagem principal é uma nordestina de sotaque carregado. Qual a sua opinião sobre esses clichês que são disseminados na maioria das vezes pelas novelas do horário nobre?

DM - As novelas de temática nordestina testemunham um fenômeno que é comum na produção televisiva brasileira, notadamente nos programas do chamado horário nobre, que é o da falta de ousadia ou de criatividade, são programas feitos para atender a uma recepção acrítica, para atender aquilo que já se espera, já se sabe e já se viu. Parte-se do pressuposto falso de que o público deste horário não está muito disposto a consumir o inesperado, o inovador, aquilo que rompa com formas de ver e dizer já consagradas, portanto, não há nada de surpreendente que a novela das oito horas, de temática nordestina não saia do clichê, da fala arevesada, do sotaque pretensamente regional, mas que não se fala em lugar nenhum da região, do folclórico, do exótico, do bizarro.



LC - Vidas Secas, de Graciliano Ramos está presente em diversas listas de vestibulares do país. Você acha que ainda exista esse interesse de continuar inventando um nordeste?

DM - Enquanto o regionalismo e estas imagens e enunciados clichês funcionarem, enquanto servirem para atender a demandas e interesses das elites regionais e de outras regiões, o Nordeste vai continuar sendo reproduzido. Enquanto as camadas populares no Nordeste continuarem tendo na nordestinidade um elemento tido como positivo de suas identidades, ele continuará sendo consumido e oferecido como elemento fundamental na elaboração das identidades coletivas. Enquanto a narrativa regionalista nordestina tiver auditório e funcionar no sentido de carrear recursos e dádivas para as elites regionais, o Nordeste será reposto, inclusive pelas elites ditas de esquerda que costumam também se arrepiarem e se emocionarem em nome do Nordeste e em nome do nordestino e da cultura popular nordestina. Todas as chamadas gestões populares das cidades ou dos Estados na região, todos os governos ditos de esquerda alimentaram como ninguém as mitologias que compõem a identidade regional nordestina e a pretensa cultura popular da região, tratada sempre a partir da idéia de resgate e de preservação, repondo o lugar comum de pensarmos a cultura nordestina como uma cultura tradicional, artesanal, folclórica, rural, uma cultura vinda de outros tempos, uma cultura que não é do nosso tempo, uma cultura sobrevivência, relíquia, que deve ser artificialmente mantida com as benesses, patrocínio e mecenato dos poderes públicos.

LC - Jorge Amado talvez seja um dos maiores (se não o maior) colaboradores dessa idéia de nordeste, em destaque, a Bahia, pela tradução de seus romances para diversas línguas e pelas adaptações televisivas de suas obras. Você concorda?

DM - Jorge Amado não é propriamente um inventor do Nordeste, ele pouco utilizou ou se referiu a este recorte espacial em suas obras. Amado é um inventor da Bahia e da baianidade, Bahia e baianidade centradas na vida do Recôncavo, na memória da sociedade do cacau, do sul da Bahia. Mas, a medida que após a criação da SUDENE passou a ser interessante para as elites baianas inserir o Estado na região Nordeste, assumir a identidade regional nordestina, pelo menos sempre que atendesse a dados interesses, as formulações de Amado em torno da Bahia vão ser incorporadas à imagem do Nordeste, e isto se faz com muita facilidade porque a obra amadiana elabora uma visão do Brasil, da sociedade brasileira e, por extensão, da sociedade nordestina, muita próxima daquela elaborada por Gilberto Freyre, justamente o intelectual que foi nuclear na elaboração da identidade regional nordestina. Ambos tratam de chamar atenção para o caráter aristocrático, estamental e, ao mesmo tempo, popular da sociedade brasileira. Ambos tratam de enfatizar a contribuição africana, negra, para os costumes, para a cultura e a sociedade brasileiros.

*Graduando em Letras Vernáculas com Habilitação em Língua Estrangeira Moderna - Inglês - UFBA | Membro do grupo de pesquisas “Da invenção à reivenção do Nordeste” – Letras – UFBA | Pesquisador na área de cinema, literatura e cultura

Texto retirado do site http://www.passeiweb.com/