segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Melgaço: memórias da “cidade-floresta” - por Walter Pinto



Livro traça a história de uma parte da Ilha do Marajó que não aparece na imprensa


O professor e historiador Agenor Sarraf Pacheco, autor do "À Margem dos Marajós", livro recentemente lançado em Belém, introduziu novo conceito no meio acadêmico, mais precisamente na história dos processos culturais: o de "Cidade-Floresta". Ao discutir a trajetória de constituição da cidade de Melgaço, no arquipélago marajoara, em sua dissertação de mestrado defendida na PUC-SP, em 2004, Sarraf constatou que os conhecimentos do universo urbano coexistem com os saberes da floresta. Em alguns casos, percebeu a maior predominância destes em relação àqueles, como no caso do ordenamento das ruas, construção das casas e usos de seus espaços, práticas de trabalho, relações de convivência dos moradores entre si, entre outros aspectos. Antigos caminhos de roça, por exemplo, deram origem a ruas de chão batido, relembrando traçados e atalhos desenhados pelos ribeirinhos quando habitavam a floresta.

Para o pesquisador, em alguns pontos, Melgaço, encravada no meio da floresta, se difere de Soure, cidade mais conhecida e propalada pelos meios de comunicação de massa, em que se percebe certa racionalidade definindo o espaço, por meio de quadras, travessas e nomenclatura própria ao meio urbano. Em Melgaço, o traçado "irregular" das ruas reflete a vivência dos povos da floresta. Para o poder público, essa forma de invenção de espaços na cidade é visto como um "desordenamento" urbano. Na perspectiva dos ribeirinhos que reconstruíram a municipalidade a partir da década de 60 depois dos tempos de penúria, quando Melgaço ficou sob a custódia de Breves e Portel entre os anos de 1930 a 1960, a cidade é a expressão de seus modos de vida.


Segundo Sarraf, as representações que a grande imprensa faz do Marajó reduz a ilha aos municípios de Soure e Salvaterra, aos búfalos, ao turismo, à praia, enfim, ao lado exótico. "Esse lado é importante, mas não é o único", afirma o pesquisador. "Essa visão esquece toda uma complexidade de culturas, de vidas, de municípios que não ganham o mesmo destaque na imprensa". Percebendo que Melgaço se constituí numa cidade à margem do Marajó, tanto geograficamente como culturalmente, o pesquisador decidiu polemizar a idéia de região homogênea, pluralizando-a e problematizando-a. Daí resultar a expressão "Marajós", objetivando distinguir a região dos campos e a região das florestas, sem perder de vista as características peculiares dos 16 municípios.

Formado em história pelo campus da UFPA em Breves, Sarraf concebeu a idéia de pesquisar Melgaço quando lecionava a disciplina Estudos Amazônicos para alunos da 5ª série do ensino fundamental naquele município. "Eles perguntavam sobre a cidade, mas muito pouco podia responder, porque faltavam dados consistentes", conta. Na verdade, a carência de dados, informações e conhecimentos históricos não é um problema localizado de Melgaço, mas de quase todos os 143 municípios do Pará. "Em geral, o que se tem, são históricos muito reduzidos, produzidos por memorialistas, com ênfase a prefeitos e períodos administrativos".

Com auxílio dos alunos, Sarraf procurou reunir o máximo possível de documentos, mas pouco conseguiu. Percebeu que as histórias de vida dos antigos moradores poderiam fornecer informações capazes de dar conta do entendimento desse passado vivido. Reuniu, então, uma gama enorme de depoimentos orais sobre o viver de diferentes sujeitos sociais que habitavam Melgaço, explorando diferentes aspectos de seus modos de existir e estar no mundo. O material foi utilizado na monografia de conclusão da graduação, que enfatizou dimensões da história da cidade e do trabalho nas casas de farinha, principal produto da economia local. No passado, Melgaço, Oeiras e Portel foram considerados o Império da farinha no Pará.

Concluída a monografia, o pesquisador avançou no projeto com vista ao mestrado, ampliando-o para além dos farinheiros, buscando agora diferentes sujeitos com suas variadas experiências sociais. Sem perder de vista que a fonte oral emergiu não apenas como um material alternativo, já que o trabalhar com as histórias de vida traz as marcas da identidade marajoara, culturalmente formado dentro de matrizes de oralidade, Sarraf rastreou outras evidências históricas. Entre as novas fontes, dialogou com trabalhos de memorialistas, velhos documentos da intendência municipal, boletins de ocorrência policial e álbuns de fotografias dos habitantes. A pesquisadora Maria Antonieta Antonacci, orientadora da dissertação de mestrado, estimulou Sarraf a pensar Melgaço não como uma cidade qualquer, mas a partir de suas características singulares, ou seja, estudar Melgaço por dentro de seu próprio fazer-se urbano, para não transplantar para o lugar modelos urbanos exógenos.

Durante o estudo, ficou claro para Sarraf, que a construção da cidade não é obra apenas da intervenção do poder público. Os ribeirinhos, ao se fazerem moradores urbanos quando migram da floresta, trazem consigo suas tradições, saberes, linguagens, experiências e culturas, que vão contornando e se impregnando na montagem da cartografia urbana. "As relações de trabalho, de sociabilidade, de troca, de convivência, assim como a idéia da criação de pinto, galinha, pato e porco nos quintais de uma cidade, mostram os saberes rurais pontuando a vida urbana. Foi neste sentido que comecei a perceber Melgaço como uma cidade-floresta", afirma o pesquisador.

A consulta aos documentos policiais da década de 1960 reforçou essa percepção: os moradores se queixavam de roubo de galinhas, patos, palmitos, jangadas, ou furto de canoas e objetos da cultura material usados pelos povos da floresta. Esses diferentes furtos diziam respeito à vida rural. "Os moradores levavam para o espaço urbano da delegacia, as suas vivências com o rio, com a floresta e todo um universo de crenças, supertições. Percebi que em Melgaço, rural e urbano não se apresentavam como dimensões dicotômicas; ao contrário, constituem dimensões almagamadas de relações culturais". O urbano não vive sem o rural, assim como o rural não vive sem o urbano. Esse entendimento levou a professora Benedita Esteves, da UFAC, uma das argüidoras da banca de defesa da dissertação, na PUC, a atribuir à pesquisa, o termo "rurbano", ou seja, o rural e o urbano interagindo no mesmo espaço", relata Sarraf.




Vila foi fundada pelo Padre Vieira

Importante vila colonial portuguesa, as origens de Melgaço remontam ao ano de 1653, quando a Companhia de Jesus deu início ao processo de aldeamento e catequização dos índios Ingaíbas. Coube ao padre Antônio Vieira estabelecer a aldeia dos Guaricuru, primeira denominação do município. O livro “‘À margem dos marajós” narra três versões que explicam a etimologia de Melgaço como nome da vila.

No final do século XIX, quando a borracha explode, os grandes seringais estavam concentrados na região de floresta marajoara. Breves, Anajás e Melgaço despontaram como grandes produtores. Só em Melgaço havia mais de 40 barracões cadastrados. A cidade tornou-se vila com ares de espaço urbano organizado administrativamente, contando com prédio da intendência, delegacia, posto da capitania, igreja e outras instituições.

Em 1920, a vila entrou em declínio, juntamente com a borracha, mas também em função das relações político-partidárias que se constituíram na região. Em represália à oposição que sofria em Melgaço, Magalhães Barata a anexou a Breves durante um ano e oito meses. Depois, a vila passaria 30 anos sob domínio de Portel. Durante a 2ª Guerra, os moradores trocaram a vila pela exploração da borracha, deixando-a com aspecto de cidade-fantasma. Somente duas famílias continuariam lá residindo. O repovoamento ocorreu quando a guerra chegou ao fim.

Em 1961, após intensa mobilização pela conquista da emancipação, a vila foi elevada à categoria de município. No imaginário popular, São Miguel, o padroeiro, assumiu papel de líder político na luta pela emancipação. Uma das histórias fantásticas narradas em Melgaço afirma que a imagem do santo suou em função do esforço que realizava para conseguir o objetivo. Vem da década de 1930, a história do santo que olhou para trás, representando a recusa em olhar os tempos difíceis que Melgaço teria pela frente.
Fonte: Beira do Rio Notícias (Jornal da Universidade Federal do Pará)